domingo, dezembro 23

 
Era uma vez
Há anos, estava eu a dirigir uma acção de formação para professores e os meus formandos insistiam que os alunos não liam, não sabiam apreciar as evidentes obras de literatura que qualquer homem ou mulher com dois dedos de testa tem de apreciar... Não sei as palavras, ficou-me só o episódio. Enfim, do tipo “o que conta é a vontade”.
Ouvi e calei. Não há argumentos que possam valer perante quem já tem as conclusões tiradas. Os meus alunos do 11º ano já sabem que para haver argumentação é necessário haver disponibilidade para.
Na sessão seguinte, tirei três grossos volumes: A República, de Platão, Crítica da Razão Pura, de Kant, e creio que Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Li os títulos de cada uma e perguntei quem dentre os presentes as tinha lido.
Ninguém.
- Então não têm vergonha de não terem lido três das obras fundamentais que fizeram a gramática do pensamento ocidental? Como é que querem ser pessoas cultas sem terem lido as bases da nossa cultura?
É claro que não era legítimo exigir-se-lhes que tivessem lido obras que passavam bem ao largo da sua história pessoal. Mas não seria de esperar que um acto de vontade esclarecida levasse aquelas pessoas a ler aqueles diamantes da cultura ocidental? Não!
Mas, então, por que razão é tão evidente que os nossos alunos, vindos de meios rurais e filhos de casas sem livros, hão-de ter vontade de ler aquilo que nem sequer sabem que existe?
Eu insisto: o que é a vontade?
E mais ainda: como é que eu posso ter vontade de querer fazer uma coisa que não quero?
Enquanto não me explicarem isto, eu continuo a dizer que... peço desculpa... não sabem do que estão a falar.
E acuso-os de cumplicidade numa escola, a nossa, que está feita para o êxito de alunos que são filhos de famílias com bom capital escolar, ricas, urbanas e brancas. O que significa que todos os que se afastam desse padrão tendem a ser triturados por esta escola. E para sustentar esta escola, recusamos todas as evidências e tornamos evidentes tudo o que a legitima.
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